quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Surge um clássico do cinema


Posso dizer que esse é um dos melhores filmes de terror de todos os tempos na historia do cinema brasileiro, pode parecer exagero mais digo isso com total firmeza, pois Mojica é único representante desse genero em nosso país. Fiquei imensamente feliz ao ver na tela um filme de terror com a nossa cara, sem casas americanas com jardim na frente e sem louras peitudas, um filme que se passa na favela paulista, abrindo caminho para reflexão sobre a sociedade 40 anos depois de "Esta noite encarnarei no teu cadáver". Me dá muita raiva quando as pessoas falam de José Mojica como um cineasta trash, pois seus filmes não tem nada de lixo, são grandes exercícios de linguagem estética, principalmente os filmes da decada de 60 e 70. Ver o preconceito que ele sofre é ver como esse país trata mal os seus gênios, José Mojica é um dos maiores do cinema de terror e do cinema como um todo, antítese do Cinema Novo, homem simples, que foi criado nos fundos de um cinema e que colocou sua paixão expressos na tela com filmes fantásticos e ousados, sem teoria nenhuma, ele mesmo se reiventou, único personagem do terror criado na tela do cinema. Assistam por exemplo "O despertar da besta" e vejam um filme que não perde em nenhum momento aos grandes da vanguarda cinematográfica brasileira e mundial. "A encarnação do demonio" me deixou com frio na espinha, ha muito tempo eu não sentia isso ao ver um filme, que montagem fantástica, falas sensacionais, fotografia e figurinos lindos. A cena em que a câmera corta de um tiroteio na favela para Zé do Caixão com as mãos sobre um caixão branco de uma criança, é fantastico, lindo. Mais vez digo que é cinema com a nossa cara, cemitério com a nossa cara, e no final ele ainda dedica o filme a Rogério Sganzerla, grande gênio do cinema marginal.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008


O cinema marginal tem me conquistado a cada dia, tenho assistido a belos filmes desse movimento e a cada momento e cada película assistida, me sinto mais impactado e mais envolvido com a força criativa de produções maravilhosas, ousadas, polemicas. Os filmes de Rogério Sganzerla, Maurice Capovila e principalmente do diretor José Mojica Marins. Há alguns meses estive em uma mostra dos primeiros filmes de Zé do Caixão, no Palácio das Artes em Belo Horizonte, com a presença desse diretor que se confunde com seu personagem, e que na minha opinião ao lado de Glauber Rocha pode ser considerado um dos grande representantes da luta quixotesca de se fazer cinema no Brasil. Em sua palestra pude conhecer um pouco desse diretor, que é de uma simplicidade e ao mesmo tempo de uma sofisticação impressionantes. Em uma época em que não vimos mais pessoas dispostas a lutar pelo cinema brasileiro, José Mojica se mostra ainda um apaixonado pela sétima arte, criado nos fundos de uma cinema, ele é um exemplo da decadência e da ingratidão deste país quanto aos seus grandes artistas, que se reflete quando são reconhecidos primeiro no exterior. Tido como marginal, maldito, primitivo, alguns filmes dele são verdadeiros exercícios de metalinguagem cinematográfica e ousadia estética. Escrevo este post totalmente bestializado depois de assistir “O despertar da besta”, filme revolucionário, em que ele trata de temas como taras sexuais, consumo de drogas, orgias, além de um rompimento com o cinema narrativo. Em uma época em que os projetos culturais se converteram em uma indústria, vimos porque às vezes caras como Zé não conseguem apoio, pois ele é de outra época, em que uma idéia valia mais do que um artifício.

sábado, 19 de julho de 2008


Sempre que volto do Rio de Janeiro, a impressão de subdesenvolvimento fica mais claro pra mim, toda a efervescência de gentes, de rostos, de pobreza e riqueza é de uma força que não tem como não me espantar. A impressão de que aquela cidade já foi linda e promissora é incontestável, falo do centro, Cinelãndia, Santa Teresa, Lapa, Largo da Carioca, Rua do Ouvidor, casarões decadentes que conservam uma elegância própria, imagem de uma época em que o país era promissor, mais com traços europeus. Meus pensamentos glauberianos me levam a refletir, pois ali em cada esquina, se vê um traço marcante de nosso ser, de nossa mistificação, imagens da sensualidade e da malandragem cariocas. É impressionante como o Rio possui uma aura marginal e decadente que contrasta com sua pitoresca beleza natural. Uma beleza que mascara a decadência de suas ruelas, por onde já passaram do “flanêur” João do Rio a rainha negra da boemia, Madame Satã. O Cine Pathé agora é Igreja Universal, traço do fanatismo protestante que prolifera a cada dia pela política carioca com Garotinhos, Rosinhas e Crivelas. Belos sobrados são hotéis para solteiros, que são alimentados pela prostituição cafajeste e barata onde as mulatas da Lapa se vendem em troco de dólares do gringo imperialista, é ali naqueles quartos com cheiro característico que eles literalmente botam no nosso rabo.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O cinema é a forma de arte que me abriu porta para todas as outras, a maiorias dos post desse meu blog são sobre filmes que me tocaram de alguma forma. Mais entre outras coisas, a arte cinematográfica me fez descobrir a obra de um diretor brasileiro que sempre é alvo de discussões na imprensa. 25 anos após sua morte ele é motivo de polêmica, seu estilo único e próprio de fazer cinema ainda é incompreendido por muitos. Acabo de ver mais uma vez ao filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha o diretor que acabei de falar, é um filme que me emociona demais. Não há como não remeter as imagens da podridão política de Eldorado à política atual, é impossível não se emocionar com o poeta Paulo Martins louco, girando tonto diante da massa que vai ser esmagada. Quando vi esse filme pela primeira vez, aquelas cenas não saíram da minha cabeça, toda aquela criatividade que até hoje pulsa na tela. Não sei porque eu, um jovem de 23 anos me interessei tanto pelo cinema e pelas idéias glauberianas, sei lá as vezes por ter dentro de mim uma revolta muito grande em ver nosso país tão rico se resumir a coisas tão pequenas. As idéias sobre colonização cultural me fez parar pra pensar nas imagens que temos de nós mesmo, a telenovelização do nosso imaginário, a arte brasileira reduzida ao que a Rede Globo acha melhor, a dificuldade que as pessoas tem de assistir a um filme brasileiro frente a facilidade de tentar ter um padrão de vida americano, as pessoas querendo ser americanas, negros querendo ficar brancos, pobres querendo se parecer com ricos...acho que é isso que Glauber me ensinou, a olhar pra dentro de mim.



"Qual o sentido da coerencia?
Dizem que é prudente observar a história sem sofrer.
Até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder."
Paulo Martins

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A muito tempo que não me emocionava tanto


O filme "Piaf um hino ao amor" é sentimentos fortes do começo ao fim. A cinebiografia de Edith Piaf é interpretada brilhantemente por Marion Cotillard, atriz que se entrega de corpo e alma, emocionando em cenas marcantes que ficam em nossa memória. Quando a cantora sai da vida pessoal e entra no palco em um ato de entrega à arte, para cantar "Hymne à l'amour", extravasando toda a dor de perder seu amado, é dificil conter as lágrimas. Já no final da vida, Piaf morreu aos 47 anos mas aparentando muito mais, ela clama pelo seu público e mesmo impossibilitada sobe ao palco. Quando sai do cinema, ainda não tinha me recuperado de tamanha emoção, a muito tempo que um filme não mexia tanto comigo. Sai da sala com outra visão do mundo, olhando as pessoas com vontade de dizer a elas o quanto o amor é importante em nossas vidas, que viver sem amor é o mesmo que padecer na terra. A entrega a arte, a música transformando a vida das pessoas e nos mostrando atravéz do cinema a grandeza do amor. Não tenho palavras para descrever a beleza que é cada instante desse filme que me emocionou em todas as cenas. Quando a pequena Edith canta a Marselhesa na rua para ganhar moedas para sobreviver, comecei a chorar e não parei mais, terminando num choro convulsivo no grandioso final ao som de "Je ne regrette rien". Posso estar exagerando pois acabo de ver o filme e escrevo meio arrebatado, mas mesmo que exista alguns deslizes, exageros e pieguismos no roteiro, "Piaf um hino ao amor", é um dos melhores filmes que assisti nos ultimos tempos.
A letra de "Je ne regrette rien", traduz um pouco do que é a personalidade da Edith Piaf mostrada no filme:
Não, de Jeito Nenhum.
Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Nem o bem que me fizeram. Nem o mal, tudo me parece igual. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Está pago, varrido, esquecido. Eu estou farta do passado. Com minhas lembranças, eu alimentei o fogo. Minhas aflições, meus prazeres. Eu não preciso mais deles. Varri meus amores. Junto a seus aborrecimentos. Varri por todo dia. Eu volto ao zero. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Nem o bem que me fizeram, nem o mal, tudo me parece igual. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Minha vida, minhas jóias, hoje. Começa com você.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007


Em meu ultimo post, pra falar de marginalidade, usei como pretexto as discussões patéticas em mesas de boteco; geralmente filosofias de botequim costumam chegar a lugar nenhum.
Mas nem sempre é assim, em mesas de bar surgiram lindas canções e movimentos que marcaram a história da cultura brasileira.
Composições inesquecíveis de grandes nomes do samba como Nelson Cavaquinho, Assis Valente, Ismael Silva, Geraldo Pereira, surgiram no calor das rodas de samba nos bares da Lapa dos anos 40 e 50.
Nos anos 60, depois de um tempo de ostracismo, Cartola foi redescoberto, o jornalista Stanislaw Ponte Preta encontrou o compositor lavando carros em um estacionamento no centro do Rio. Ele e Dona Zica abriram um bar que entraria para a historia, o Zicartola era freqüentado por todo tipo de gente: sambistas, estudantes, malandros e intelectuais. Foi o iniciador de muitos artistas e idéias, ali Clementina de Jesus cantaria pela primeira vez para uma platéia, assim como Paulinho da Violai. O emblemático show “Rosas de Ouro”, faria grande sucesso com as belas canções que ali surgiram.
Outra turma, na Zona Sul, revolucionaria o cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto, se reuniam em bares de Botafogo. O movimento do Cinema Novo foi fruto de discussões acaloradas em mesas de bar, tendo como líder e aglutinador o gênio criativo de Glauber Rocha, jovens cineastas dispostos a experimentar e ousar, desmascararam nossa crueldade com câmeras vertiginosas na mão e várias idéias na cabeça.
Nos final dos anos 60, Nelson Rodrigues era freqüentador assíduo do Bar Antonio’os no Leblon, com seu sarcasmo peculiar, Nelson criticava em suas crônicas as idéias esquerdistas de pseudointelectuais, que entre um wysk e outro, faziam filosofias vazias a venerar Marx e Sartre.
Aliás o Nelson me inspirou para escrever este post, acabo de ler uma série de crônicas fantásticas no livro “O óbvio ululante”, verdadeira pérola jornalística. Na coluna “Confissões”, publicada de 1967 a 68, o dramaturgo traça o panorama de uma época de forma debochada com humor negro profético e delicioso. Vale a pena conferir, aliás acaba de chegar às livrarias uma nova edição, com uma bela diagramação, bem legal.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR?


Em conversas de bar sempre surgem discussões, filosóficas, existencialistas.... Cachaça, cerveja, conhaque e cia. são um bom combustível para divagações. Em mesas de boteco, sempre ficamos ridículos falando de assuntos que tratamos com extrema seriedade. Atualmente em uma dessas conversas, percebi que já estava discursando inflamado sobre a marginalidade, na arte, na vida. Em minha opinião a visão de mundo de quem está na margem é muito melhor de quem está no centro. Nesse mundo cheio de padrões e preconceitos, ter uma visão de fora é sempre melhor. A primeira vez que li algo a respeito, foi em crônica de João Silvério Trevisan, escritor que através de sua coluna na extinta revista gay, "Sui Generis", contribui muito em minha descoberta.
Esse texto foi incluído como capítulo em "Devassos no Paraíso", em minha opinião um dos livros mais importantes que tratam da homossexualidade no Brasil. É como se com suas palavras, ele desse um tapa na cara de todos esses burocratas da sexualidade, que existem por ai.
Para ilustrar, Madame Satã, malandro, artista, presidiário, pai adotivo, negro, pobre e charmoso representante da marginalidade.



INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR?de João Silvério Trevisan.
Integrar-se ou desintegrar, eis a questão. Percorro o meio homossexual e não canso de me deparar com situações surpreendentes. Não, não vou falar de pegação (ou açougue) nos cinemas, parques e saunas -- não desta vez. Num debate promovido pelo CAEHUSP, dentro do seu ciclo de mesas redondas sobre homossexualidades, ouvi uma conversa que foi entusiasmando o público na mesma proporção em que ia me deixando de cabelos em pé. Como havia uma vereadora presente, alguém propôs com eloquência que ela encaminhasse junto à Câmara dos Vereadores de São Paulo os projetos de: 1) determinar uma praça para as bichas caçarem à vontade (sugeriu-se a Praça Roosevelt, pela proximidade de vários outros points gueis); 2) batizar ruas e criar monumentos com nomes de bichas e lésbicas eméritas. "Meu Deus, se mencionarem o meu nome, onde vou me esconder?" -- pensei, aterrorizado ante a possibilidade de estar entre as bichas eméritas.
Não iria me esconder por timidez. É que eu execro monumentos de qualquer tipo, a qualquer pessoa. Na década de 70, quando morava no México, fiz meu único poema em espanhol, em homenagem a García Lorca, amaldiçoando as pedras dos monumentos feitos sobre nossos cadáveres, depois que nos atiraram pedras a vida toda. Mais recentemente, quase criei sérios problemas político-familiares quando o prefeito de minha cidade natal quis criar um centro cultural com o meu nome. Considerando que era período eleitoral, o centro seria inaugurado sem qualquer infra-estrutura, para ser fechado em seguida, e eu me sentiria manipulado. Mas, sobretudo, pesava a incongruência da minha situação: prestes a ser despejado do meu apartamento, sem dinheiro e solitário num país de merda -- mas com meu nome na fachada de um centro cultural!... Ou seja, tem algo de podre no reino da Dinamarca.
Querem nos prestar homenagem? Pois que seja em vida, aqui e agora, sem motivo especial: a maior homenagem é nos deixar viver do jeito que somos, queremos e merecemos pelo que fizemos. Ou seja, reconhecimento real e não hipocrisia para descarregar consciências pesadas. Por isso, no tal debate, a convicção com que se reivindicava a consagração do gueto me pareceu uma burrice suprema. Ao contrário do que se pensava, não havia nisso libertação, mas confinamento: pode-se trepar, contanto que seja ali. Ora, faça um exercício de imaginação para pensar no que não nos estaria sendo pedido em troca, pois nada nos é dado de graça -- sejamos nós pobres ou pretos ou homossexuais ou, de algum modo, parte daquele grupo de cidadãos de segunda catergoria, tratados como a escória neste país de banqueiros e ruralistas. Ou não é ser escória ouvir piadinhas, amar clandestinamente, ter que esconder metade da sua vida, etc, etc. etc.?
(Sei que cada um de vocês pode fazer, por experiência própria, sua lista da repressão quotidiana que nos impingem.) Pra mim, um fato é certo: não preciso que determinem um lugar onde eu possa caçar, simplesmente porque quero caçar em qualquer lugar da cidade. E quanto aos monumentos, recuso ser cooptado depois de morto. Vivo incomodando e tenho pago (alto) preço por isso: apesar de extremamente intensa e criativa, graças ao meu esforço, minha vida é cheia de dificuldades e humilhações (recentemente um jornal devolveu um artigo que eu, com 52 anos, escrevera a seu pedido; e me pagou -- para não publicar; tema: homossexualidade). Portanto, prefiro que a sociedade -- que me puniu por ser bicha, pensar com a própria cabeça e escrever criativamente -- continue me tendo atravessado em sua garganta, mesmo quando eu já for cadáver. Por que não pensar maior, para além do gueto? Criar, tirar do nada, inventar, não é o que fazemos a vida inteira?
A partir de espaços rarefeitos e emoções recônditas, criamos e inventamos o nosso mundo incessantemente, para poder sobreviver no exílio em que nos meteram. Ou será que a discriminação que sofremos é apenas um faz-de-conta de gente mimada (que só pensa em trepar, como se diz por aí, a nosso respeito)? Será que não é prova de burrice sonhar em integrar-se na mesma sociedade injusta que nos oprime? Será que tudo o que queremos é partilhar da mesma mediocridade que nos empurra para as margens? Ah, a margem! Eis o ponto. Por menos que seja, o nosso grande trunfo é o olhar das margens que fomos obrigados a desenvolver. É esse olhar que nos fornece instrumentos para exercer a crítica à cultura e é graças a ele que podemos sonhar com (talvez propor) um mundo diferente. Nossa "doença" é o melhor que temos. Caso contrário, seria preferível casar, ter filhos e virar "saudáveis" executivos -- como fazem muitos "homens de bem", ainda que continuem freqüentando saunas de viado, às escondidas.
Integração? Não, obrigado. A sociedade tem que aprender não com nossa saúde forjada, mas com nossa "doença" -- aquilo que ela considera doença, porque a assusta e coloca em crise. Afinal, somos "doentes" quando ousamos transgredir, arriscando muito, quase tudo. E transgredir em nome de valores que estão muito acima da mediocridade medida pelo preço do mercado. Não é graças a esses valores que conseguimos sobreviver afetivamente no deserto, cavando com as próprias mãos o nosso amor e a nossa fé, todos os dias? Pois é com isso também -- nossa "doença"-- que construímos nossa singularidade individual. Portanto, chega de palavras-de-ordem, seja na publicidade que nos manda comprar para ser belos (consumir para ser mais consumível), seja nos discursos revolucionários de algibeira, ansiosos por substituir os ocupantes atuais do trono. Melhor, isso sim, tomar posse da nossa homossexualidade como um trampolim para a desintegração.
Desintegrar, por exemplo, equívocos como aquele do masculino baseado no culto fálico e na sua própria falta de saída. (Esse é um outro papo, a crise do masculino -- da qual as bichas somos ponta de lança, quando exacerbamos as contradições masculinas.) Se temos uma função social própria, essa é desintegrar. Somos mestres em desintegrar, já que vivemos da desintegração. Nós construímos não contra ela mas graças a ela. Aprendemos a viver em meio aos fragmentos que nos deixaram sobrar. Os negros brasileiros sabem do que estou falando: pensem na feijoada, hoje prato nacional, criada pelos escravos com os restos de comida que recebiam. No caso homossexual, a singularidade está na repressão que sofremos desde pequenos. Pode parecer pouca porcaria. Mas não é. A sociedade, tal como constituída, dificilmente poderá nos aceitar em seu seio -- a menos que ela mude, coisa comprovadamente difícil; ou que mudemos nós -- tal como já fizeram milhares de pessoas no decorrer da História.
Essas são as duas alternativas possíveis. E digo por que a sociedade não pode nos engolir. Por mais que proliferem os bares, as danceterias, as saunas, os desfiles de moda, as peças/filmes/exposições e até mesmo os espaços na mídia, estaremos sempre sob vigilância estrita -- porque somos basicamente condenáveis. Socialmente, vivemos num ilusório bolsão de tolerância. Ou será que, na reforma constitucional brasileira você viu a esquerda votando a favor da opção sexual como um direito do cidadão? Será que já ouviu D. Evaristo Arns, o cardeal que adora ficar do lado dos oprimidos, reconhecer a opressão aos homossexuais? Será que você conhece algum organismo internacional ligado à ONU que defenda os direitos homossexuais no mesmo grau de legitimidade com que brande os direitos dos negros, das crianças, das mulheres, dos índios, etc.? Não. E duvido que vá conhecer tão breve.
Pelo mesmo motivo que até hoje não permitiu indenização aos homossexuais vítimas do nazismo, como aconteceu com outros grupos, fossem eles judeus, políticos e até mesmo ciganos. Ou pelo motivo que leva os delegados brasileiros a engavetar sistematicamente os casos de assassinatos de homossexuais. Será que você nunca notou o constrangimento mal disfarçado das campanhas contra a Aids, no tempo em que isso era basicamente doença de viado (que dá o cu, como o Paulo Francis fazia questão de frisar)? O motivo é simples. Para a atual sociedade moderninha, mesmo quando não afirma em voz alta, nós ainda significamos um bocado de coisas abomináveis. Eu poderia citar uma penca delas. Mas vamos nos concentrar apenas no denominador-comum que perpassa todas as condenações, discriminações ou omissões conhecidas: o prazer. Nós horrorizamos o mundo porque nossa grande reivindicação repousa sobre a liberdade de amar, um amor não procriativo, que visa apenas o prazer.
Você poderá dizer que hoje isso não é privilégio nosso, já que a sociedade moderna assenta-se sobre o hedonismo e o consumo. Engano, pois o nosso prazer passa por outro viés: o do estigma historicamente consagrado-- como já analisei na SG nº 23. Nosso prazer é ultrajante. Está lá na Bíblia, mas também em leis americanas ou inglesas ou chinesas e na orientação seguida por muitos catedráticos de psicologia, até hoje. Além do mais, o prazer veiculado em nossas sociedades é sempre uma escapatória para a culpa. Culturas que têm como figura icônica um Deus sofrendo na cruz costumam ter problemas com o prazer puro e simples -- principalmente o sexual, sem pretensão reprodutiva. Por isso, fazemos emergir o lado sombra dessas sociedades baseadas na necessidade do sofrimento. Despertamos seus demônios adormecidos. Elas adoram nos crucificar porque ousamos nos contrapor à crucifixão (e, às vezes, pervertemos a própria dor, ao substituir Cristo por São Sebastião -- aquele todo flechado, que suspira de amor).
Em resumo, para ela nós não temos conserto. E isso nos outorga uma grande vantagem: somos fascinantes objetos do desejo recalcado da sociedade. Enquanto formos proibidos, estaremos também encantando. Ou alguém duvida que quanto mais proibido mais desejado? É a lei da culpa. Há muito tempo a humanidade vem exorcizando através do horror ao nosso "desvio" seu próprio desejo de transgredir. Somos o espelho de sua transgressão, por nós atualizada. Quando a sociedade vai nos integrar? No dia em que formos suficientemente integráveis. E, repito: pagando um preço. Pense em quanto vai ser preciso dar em troca. Exercite sua imaginação: faça uma lista. No final, você verá que o Paraíso Social tem cara de papai-mamãe -- que poderá ser papai-papai ou mamãe-mamãe. Mas sempre se exigirá que a gente se coloque no nosso lugar, quer dizer, o lugar à margem que a sociedade nos ofereceu, sobretudo quando delimita nosso espaço. Porque lá é o lugar dos transgressores que somos, gostemos ou não.
Portanto, será preferível continuar criando Vida nessas inóspitas margens. Foi o que muita gente extraordinária fez. Foi o que Safo fez. Sócrates fez. Michelângelo. Tchaikovsky. Virginia Wolf. Pasolini. Marguerite Yourcenar. Mário de Andrade. É outra lista longa. Informe-se e faça a sua própria. Vai ser delicioso saber que você nunca esteve só -- parte do seu verdadeiro mundo, não daquele onde nos querem enfiar. E haja listas!


(Publicado na revista SUI GENERIS; julho/1997, nº 25; e como apêndice do livro DEVASSOS NO PARAÍSO, Ed. Record, 2.000)